Thursday, September 02, 2004

 

São Bento do Sapucaí, 12 de Agosto de 2004

Caro Abadius,

não pude conter-me na ânsia de contar-lhe de andanças minhas antes mesmo da chegada de sua eventual resposta. Os dias por aqui na Mantiqueira estão lindos com o céu aberto, limpo e azul e a temperatura amena de dia e gelada a noite. Tenho passado as tardes nessa minha varanda – d’onde agora escrevo – com essa pequena praça arborizada em frente e o perfil de nossas pequenas montanhas ao fundo. Diretamente em frente, além da praça e abaixo das montanhas, estão sempre as "town houses" de meus vizinhos, cada qual de sua cor. Nada de muito importante acontece por aqui e resultou que a coceira de colocar-lhe a par de minha vida sobrepôs-se à educação do aguardo para confirmar sua real vontade de manter essa correspondência.

Voltei recentemente de Paraty, que para todos meus fins práticos pertence ao universo restrito pelo qual preferivelmente movimento-me, esse histórico Vale do Paraíba (doravante o "Vale"). Fui a um evento literário (na verdade já pela segunda vez), a convite de um casal Paulistano que construiu nos arredores de São Bento do Sapucaí um pequeno idílio rural com todas as conveniências modernas requeridas para uma vida higiênica, relaxante e protegida dos ventos e geadas. Ele é um editor bem estabelecido no país hoje e desenvolvemos uma amizade baseada em conversas soltas sobre seus autores e os de seus concorrentes, além de comentários sobre obras que eu às vezes leio (Inglesas e Norte Americanas em especial) e que provavelmente nunca chegarão a ser traduzidas ao português – você já leu "Everything is Iluminated" do jovem Jonathan Safran Foer ? Como alguém traduz isso sem criar algo totalmente novo ? É coisa para um Edward FitzGerald da vida. Mas dizia-lhe que fui a Paraty para um evento literário, na verdade uma festa deveras improvável em sua dimensão e reverberação para um país de tão baixa auto-estima nos assuntos ditos de alta cultura. Como no ano passado passei meus quatro dias lá como espectador descomprometido, perambulando entre alguns debates (mas não muitos), às vezes tomando pausas para esses cafés espresso densos e cheirosos que ganharam o dom da ubiquidade com a popularização das máquinas que os produzem. A cidade estava cheia de jovens e adultos que me pareciam otimistas e interessados nos autores brasileiros e estrangeiros que se revezavam no palco a discutir um pouco de tudo. O ponto alto para mim foi um "debate" entre um autor Angolano, (Agualuz ?) e Caetano Veloso, aquele cantor popular dito "tropicalista" do qual você há de recordar-se. Do texto do Angolano não me lembro muito de nada, mas do timbre inesquecível da voz dengosa de Caetano Veloso não poderei nunca me esquecer. Foram mais de duas horas com ele repetindo as mesmas palavras exaltadas, mas sem perder em nenhum momento o ritmo de marola e preguiça. Fechei os olhos para embalar uma meia soneca nesse concerto (inclusive pois no começo reparei que o Brasileiro andava com um daqueles relógios Cartier modelo Tank no pulso e achei que atrapalhava o sabor tropical do instante – daí meus olhos fechados). Previsivelmente foram poucos os que souberam apreciar a refinada oportunidade de ouvir Caetano Veloso com esse Angolano. No café do lado de fora da bonita tenda que se armou para os debates só se ouvia vozes elevadas contra a falta de objetividade do cantor Brasileiro (teria ele lido o livro que deveria comentar ?), contra o seu gosto por ouvir suas próprias frases, contra seu desrespeito com a platéia etc etc. Pareceu-me o mesmo que reclamar do volume da música num rodeio ou a frieza da exposição das obras no British Museum. Que chato ter que conviver com esse racionalismo recém descoberto da classe média brasileira, depois de 3 décadas de louvor a esse mesmo conteúdo que hoje ela despreza. Não dediquei esforço algum a argumentar que Caetano Veloso é forma e não conteúdo. De pouco que importa o que ele diz se como ele o faz é tão apaixonante ?
Acho que você perceberá por mais essa mensagem que não sou mais o mesmo que conheceu em nossas transações – asseguro-lhe na verdade que recuperei uma condição mais autêntica com a liberdade que nosso patrimônio trouxe-me.

Atenciosamente,


Manuel Rangel

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